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terça-feira, 16 de novembro de 2010

Os efeitos da decisão desfavorável ao Fisco no processo administrativo tributário

            O Estado brasileiro é politicamente organizado na forma de três Poderes ou órgãos de soberania (CF, art. 2º). A cada Poder do Estado foi atribuída determinada função: executiva, legislativa ou judiciária, mas essa função não é exercida com exclusividade. Ccada órgão exerce preponderantemente uma função (típica), e secundariamente as outras duas (funções atípicas).
            O processo administrativo tributário (PAT) é o exercício pelo Poder Executivo da função atípica de julgar, no que a doutrina tem denominado de função “quase-jurisdicional”[1], pela similitude que esse procedimento guarda com o processo judicial.
            Levando em consideração que o Estado é o todo-poderoso detentor da prerrogativa de efetuar o lançamento (CTN, art. 142), cuja função é fazer nascer o crédito tributário, do qual o próprio Estado é o titular, o processo administrativo tributário objetiva amenizar essa unilateralidade, assegurando ao cidadão, através de garantias processuais-constitucionais, um mecanismo de controle da legalidade dos atos do Fisco, proporcionando maior segurança jurídica na relação Estado-contribuinte[2].
            Sob essa perspectiva, o PAT é uma garantia assegurada ao contribuinte[3].
            Seu início se dá, em geral, por meio de uma impugnação ao lançamento, cujo propósito é extinguir ou minorar o crédito tributário, e se finda com uma decisão em que o órgão julgador acolhe ou rejeita a pretensão do contribuinte.
            Naturalmente, se o contribuinte não alcançar êxito no processo administrativo, poderá recorrer ao Poder Judiciário (CF, art. 5º, XXXV), com vistas a ver resguardados  seus interesses. Sendo integralmente acolhida a aspiração do contribuinte, e superada a possibilidade de recursos, o crédito tributário estará extinto, nos termos do art. 156, IX do CTN:
Art. 156. Extinguem o crédito tributário:
(...)
IX - a decisão administrativa irreformável, assim entendida a definitiva na órbita administrativa, que não mais possa ser objeto de ação anulatória;
            Mas e se a decisão do contencioso administrativo for desfavorável ao Fisco, a Fazenda poderá se valer da tutela jurisdicional para desconstituí-la?
            O assunto, de longa data conhecido da doutrina, ganhou ares de polêmica com a edição do Parecer PGFN/CRJ n. 1.087/2004, que autorizou a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional a ajuizar ação de conhecimento e mandado de segurança contra decisões administrativas em matérias tributárias que “causassem lesão ao patrimônio público”, no que diz respeito à legalidade, juridicidade, ou diante de erro de fato. O parecer causou certa celeuma entre os juristas, ocasionando um cisão entre os que aquiesceram o entendimento da Fazenda e os que veementemente o rechaçaram.
            Os que advogam essa tese se fundamentam no fato de que as decisões dos órgãos colegiados de representação paritária - de formação heterogênea, compostos de representantes da Fazenda e dos contribuintes -, não refletem a vontade definitiva da Administração Fazendária no que concerne à exigibilidade do crédito tributário. Negam a teoria da coisa julgada administrativa e argumentam que a universalidade da jurisdição e o seu acesso, na medida em que vale para o contribuinte, vale também para o Estado, sendo facultado à Fazenda lançar mão de ações às instâncias judiciárias para ver desconstituídas as decisões administrativas desfavoráveis pronunciadas por esses órgãos mistos. Entre os autores que endossam essa ideia, são citados por Líria Kédina C. de S. e Moraes[4]: Aurélio Pitanga Seixas Filho, Edvaldo Brito, Lídia Maria Ribas, Rubens Gomes de Sousa, Gilberto de Ulhôa Canto, Celso Ribeiro Bastos e Michel Temer.
            Contudo, a despeito da autoridade destes autores e do brilhantismo de seus argumentos, parece ser outro o posicionamento da maioria da doutrina.
            Para Celso Antônio Bandeira de Mello[5], a coisa julgada administrativa ocorre quando, relativamente a algum ato administrativo, “a Administração fica impedida não só de retratar-se dele na esfera administrativa, mas também de questioná-lo judicialmente”. Os princípios da segurança jurídica e da boa fé são seus fundamentos básicos. Segundo o autor, sua ocorrência “é particularmente óbvia em face de decisões de órgãos colegiais em que há participação dos administrados”, os quais a lei estruturou desse modo visando uma solução imparcial dos litígios.
            Acompanham o eminente juspublicista, negando à Administração Fazendária a prerrogativa de tentar cindir judicialmente decisão desfavorável no contencioso administrativo: Paulo de Barros Carvalho, Ives Gandra, Eduardo Bottalo, Ruy Barbosa Nogueira, Laudio Camargo Fabretti, Djalma Bittar, Ricardo Lobo Torres, Marco Aurélio Greco, Hugo de Brito Machado, José Eduardo Soares de Mello, Sacha Calmon, Alberto Xavier, entre outros[6].
            Os fundamentos dessa corrente partem, em geral, de compreensões extraídas da teoria do órgão e da impossibilidade de órgãos pertencentes à mesma pessoa jurídica litigarem judicialmente entre si[7]. Com efeito, no âmbito federal, tanto a Procuradoria da Fazenda Nacional, quanto o Conselho de Recursos Fiscais (Conselho de Contribuintes) e a Câmara Superior de Recursos Fiscais, vinculam-se ao Ministério da Fazenda, órgão do Poder Executivo, submetidos à mesma personalidade jurídica, a União. Sendo assim, não haveria possibilidade de a Procuradoria da Fazenda ingressar em juízo contra decisão do Conselho de Contribuintes, devido à falta de uma das condições da ação, o interesse de agir.
            Mais do que obstáculos processuais, aduzem esses autores que é preciso contextualizar a teoria da separação de poderes, reconhecendo ao Executivo atribuições que não sejam meramente administrativas ou de execução, como a função de julgamento que se encontra prevista expressamente no inciso LV do art. 5º da Constituição, onde se faz referência explícita ao processo administrativo. Do mesmo modo, é função do Executivo realizar a justiça, especialmente no processo administrativo fiscal, em que os órgãos de julgamento “não atuam no interesse do Estado-Administração, porque desempenham atividade quase-jurisdicional” [8], de acordo com o interesse público primário da coletividade.
            Além disso, a inafastabilidade da jurisdição é um direito do cidadão contra o Estado, jamais deste contra aquele, como quer indicar a tolopologia do preceito constitucional (CF, art. 5º, XXXV), inserido no capítulo dos direitos e garantias individuais. Se quisesse se colocar em nível de igualdade com o cidadão, deveria o Fisco despir-se de prerrogativas como a autotutela e a autoexecutoridade de seus atos, que, em regra, o fazem prescindir do Judiciário.
            Por fim, alega-se que se a irresignação da Fazenda fosse sempre levada a juízo, constituiria mais um privilégio para o crédito tributário e acabaria por esvaziar por completo o processo administrativo, desestimulando os contribuintes a buscar esta via e ocasionando mais abarrotamento e morosidade ao Poder Judiciário, o que justamente o PAT buscou evitar.
            A jurisprudência do STJ[9], embora obter dictum,  também dá sinais de filiar-se a esta tese:
ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL. CONSELHO DE CONTRIBUINTES. DECISÃO CONTRÁRIA À FAZENDA ESTADUAL. RECURSO HIERÁRQUICO. SECRETÁRIO ESTADUAL DE FAZENDA. REFORMA DE MÉRITO. POSSIBILIDADE.
1. É pacífico nesta Corte Superior o entendimento segundo o qual é possível a reforma da decisão do Conselho de Contribuintes pelo Secretário Estadual de Fazenda por meio de interposição de recurso hierárquico, na forma prevista no Código Tributário Estadual do Rio de Janeiro.
2. Tem-se aí a única conclusão possível porque, se ao contribuinte é dado recorrer ao Judiciário em caso de decisão contrária a seus interesses, a Fazenda não pode fazê-lo com o objetivo de anular atos próprios.
AgRg no RMS 26512 / RJ. Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES. Órgão Julgador T2 - SEGUNDA TURMA Data do Julgamento 15/09/2009. Data da Publicação/Fonte DJe 27/04/2010.
            De posse dos argumentos das duas correntes, pode-se perceber que a controvérsia, no fundo, é erigida sobre dois questionamentos: a) o Conselho de Contribuintes é um órgão da Administração tanto quanto a Procuradoria da Fazenda? E b) Caso seja, de qual dos dois órgãos será a vontade autorizada e definitiva, no âmbito do Poder Executivo, acerca da validade e exigência do crédito tributário?
            É de se concluir, no entanto, que maior razão assiste à segunda corrente, que nega ao Fisco a possibilidade revisar judicialmente suas próprias decisões no PAT. Tal conclusão parte da premissa de que a vontade do Conselho de Contribuintes é a vontade da própria Administração, não por outra razão: o Conselho é parte integrante da Administração Fazendária.
            Com efeito, somente a Constituição tem o poder de outorgar aos entes políticos a competência para instituir tributos (CF, arts. 153 a 156). Uma vez concedida essa competência ela é indelegável (CTN, art. 7º), nenhum ente pode transferir a outrem a responsabilidade de criar tributos, tampouco a competência de solucionar os litígios surgidos em razão de tributo de sua competência. Logo, a capacidade de decidir no contencioso administrativo tributário, que é um mecanismo que cada Ente dispõe para realizar o controle[10] de suas exações, também é indelegável.
            Corrobora com essa linha de raciocínio o art. 13, II da Lei 9.784/99. O processo administrativo tributário é organizado de forma escalonada, de modo a possibilitar que o litigante vencido leve suas razões às instâncias recursais, e, segundo o dispositivo mencionado, a atividade decisória em sede de recurso não pode ser delegada:
Art. 13. Não podem ser objeto de delegação:
(...)       
II - a decisão de recursos administrativos;
            A conclusão mais evidente é que, sendo indelegável a capacidade de decidir no PAT, os órgãos que ali atuam só podem pertencer aos quadros do próprio ente competente para instituir e cobrar o tributo, do contrário haveria flagrante violação da lei e da lógica do processo administrativo. Logo, o Conselho de Contribuintes é um órgão como qualquer outro da Administração Fazendária, se estranho fosse estaria agindo ilegalmente ou mediante delegação indevida.
             O fato de o Conselho ser um órgão heterogêneo não desnatura sua vocação administrativa, pelo contrário, essa característica tem sido um fator de legitimação e confiabilidade diante do contribuinte. Sem contar que os membros do Conselho de Contribuintes são devidamente nomeados e empossados, o que lhes confere vínculo e regime de servidores públicos, para todos os efeitos. A maneira como o PAT foi estruturado, com uma segunda estância mista, foi um opção feito pelo legislador com vistas a estabelecer um contencioso democrático e imparcial. Assim, independentemente de sua formação, a decisão do Conselho reflete a vontade da Administração, porque assim o legislador o quis.
            No tocante ao segundo questionamento, é notório que na grande estrutura administrativa do Poder Executivo, ocorre de diversos órgãos se manifestarem acerca de determinado assunto, não raras vezes de modo conflitante. Contudo, tratando-se de competência exclusiva, apenas uma manifestação volitiva prevalecerá como vontade final da pessoa jurídica a que pertencem os órgãos.
            No caso, o conflito que se apresenta é entre a vontade apurada no PAT, constante da decisão do Conselho de Contribuintes (ou de órgão de instância especial); e, de outro lado, a vontade da Procuradoria da Fazenda, que rejeita a decisão desfavorável ao Fisco.
            Observe que este não é mais o litígio que originou o processo administrativo tributário, pois já não subsiste a relação jurídica inicial entre o Fisco e o contribuinte, cuja pretensão fora acolhida no PAT, acarretando a extinção do crédito tributário. A persistência de eventual conflito será apenas interorgânico, e, diga-se de passagem, meramente de fato, considerando que a lei já lhe dera solução definitiva, segundo as fórmulas do art. 156, IX do CTN, já mencionado, e do art. 42 do Decreto n. 70.235/72, que cuida da eficácia das decisões no PAT:
Art. 42. São definitivas as decisões:
I – de primeira instância, esgotado o prazo para recurso voluntário sem que este tenha sido interposto;
II – de segunda instância, de que não caiba recurso ou, se cabível, quando decorrido o prazo sem sua interposição;
III – de instância especial.
            Sem sombra de dúvidas, a lei previu que a vontade definitiva, isto é, a vontade última e autorizada sobre o assunto do crédito tributário é a do órgão colegiado recursal atuante no PAT e não a da Procuradoria da Fazenda, que deverá submeter-se resignadamente – repita-se –, como quis o legislador.
            Desse modo, findo o processo administrativo tributário, a Administração jamais restará vencida ou perdedora, porque seja qual for o sentido da decisão, será sempre a decisão da Administração, nada havendo que justifique provocação do Judiciário. A pacificação do litígio resultou na determinação de uma vontade administrativa, única  e definitiva, cujo teor pode coincidir com a dos agentes do Fisco ou não.
            Por último, cabe salientar que a decisão definitiva no PAT não está imune à apreciação do Judiciário, que, além dos meios disponibilizados ao contribuinte, em caso de grave lesão ao patrimônio público, poderá ser provocado por meio de ação civil pública proposta pelo Ministério Público (CF, art. 129, III).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 21 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris Editora, 2009.
MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário.  28  ed.  São  Paulo: Malheiros, 2007.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 29 ed. São Paulo: Malheiros, 2004.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 26. ed. São Paulo: Malheiros, 2009.
MUSSOLINI JÚNIOR, Luiz Fernando. Processo administrativo tributário. Das decisões terminativas contrárias à Fazenda Pública. Barueri, SP: Manole, 2004.
SABBAG, Eduardo de Moraes.  Manual de Direito Tributário. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
SOUSA E MORAES, Líria Kédina Cuimar. Coisa julgada no processo administrativo tributário brasileiro: uma análise sobre o efeito das decisões contrárias à fazenda pública. Belém: Universidade da Amazônia – UNAMA, 2007. Dissertação (mestrado). Disponível em: <http://www.unama.br/mestrado/mestrado/mestradoDireito/dissertacoes/PDF/2007/coisa-julgada-no-processo-administrativo-tributario-brasileiro-uma-analise-sobre-o-efeito-das-decisoes-contrarias-a-fazenda-publica.pdf>. Acesso em: 15 nov. 2010.


[1] MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário.  28  ed.  São  Paulo: Malheiros, 2007. p. 436.
[2] SABBAG, Eduardo de Moraes.  Manual de Direito Tributário. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 1070.
[3] Num sentido mais abrangente, Hely Lopes Meirelles (2004, p. 672) conceitua o processo administrativo fiscal como “aquele que se destina à determinação, exigência ou dispensa do crédito fiscal, bem como à fixação do alcance de normas de tributação em casos concretos, pelos órgãos competentes tributantes, ou à imposição de penalidade ao contribuinte”.
[4] SOUSA E MORAES, Líria Kédina Cuimar. Coisa julgada no processo administrativo tributário brasileiro: uma análise sobre o efeito das decisões contrárias à fazenda pública. Belém: Universidade da Amazônia – UNAMA, 2007. Dissertação (mestrado). p. 73. Disponível em: <http://www.unama.br/mestrado/mestrado/mestradoDireito/dissertacoes/PDF/2007/coisa-julgada-no-processo-administrativo-tributario-brasileiro-uma-analise-sobre-o-efeito-das-decisoes-contrarias-a-fazenda-publica.pdf>. Acesso em: 15 nov. 2010.
[5] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 26. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 453.
[6] Citados em MUSSOLINI JÚNIOR, Luiz Fernando. Processo administrativo tributário. Das decisões terminativas contrárias à Fazenda Pública. Barueri, SP: Manole, 2004.
[7] Não se desconhece nesse trabalho que há algum tempo “tem evoluído a ideia de conferir capacidade a órgãos públicos para certos tipos de litígio (...), como a impetração de mandado de segurança por órgãos públicos de natureza constitucional, quando se trata da defesa de sua competência, violada por outro órgão”. Todavia “essa excepcional personalidade judiciária só é aceita em relação aos órgãos mais elevados do Poder Público, de envergadura constitucional”. (CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 21 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris Editora, 2009. p. 15.
[8] MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário.  28  ed.  São  Paulo: Malheiros, 2007. p. 476.
[9] Ver também: ROMS n. 13.592 – RJ e n. 26.228 – RJ.
[10]MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 29 ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 672.

Um comentário:

  1. Marcelo, achei seu blog superinteressante. Parabéns
    Líria Kédina C. S e Moraes

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