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sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

A Constituição de 1988 considera o Ministério Público essencial à democracia no Brasil?

             O perfil institucional consagrado pela Constituição Federal de 1988 para o Ministério Público, indubitavelmente, alçou-o a posição de relevo no cenário democrático que se formou após sua promulgação. Jamais um órgão do Estado foi tão fortemente vinculado à defesa da democracia quanto o Ministério Público na compleição que lhe fora conferida pela novel Constituição da República, acometendo-o de atribuições e munindo-o de instrumentos e garantias sem precedentes na história do constitucionalismo brasileiro.
             É certo que a atribuição constitucional de velar pelo regime democrático não é exclusividade do Ministério Público, todos os órgãos e agentes do Estado foram incumbidos da guarda dos preceitos constitucionais atinentes à democracia, como determina o art. 23, inc. I da Constituição:
Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:
I - zelar pela guarda da Constituição, das leis e das instituições democráticas e conservar o patrimônio público;
             Contudo, ao cuidar reservadamente do Ministério Público, no título em que ordenou as funções essenciais à Justiça, a Carta Magna foi peremptória em incluir entre as atribuições basilares do órgão ministerial a “defesa do regime democrático”[1], conforme se lê no art. 127:
Art. 127. O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.
             Essa especial determinação dirigida ao Ministério Público faz despontar a gravidade de seu papel constitucional, significando que dele, mais do que todos, se requer atuação zelosa e inexorável na defesa da ordem democrática, operando como guardião das circunstâncias, apto a tutelar prontamente a ordem jurídica à vista dos primeiros sinais de fraqueza das demais instituições, preventiva e repressivamente.
             Conquanto nova no constitucionalismo brasileiro, essa vinculação do Ministério Público à defesa de um determinado regime político é encontradiça no constitucionalismo comparado. Outras constituições, de outros Estados, há muito já conferiam aos seus respectivos Ministérios Públicos o encargo de defender o regime político de sua preferência. Os exemplos são apontados por Hugo Nigro Mazzilli[2], que menciona a Constituição da extinta República Democrática Alemã, que conferia ao órgão correspondente ao Ministério Público a defesa da “legalidade socialista” (art. 97); a Constituição da Checoslováquia, que previa a defesa “do Estado socialista”; ou do “regime socialista”, segundo a Constituição da Romênia. “Portanto”, conclui o autor, a Constituição de 1988 “de forma natural, destinou nosso Ministério Público à defesa do regime que lhe era mais caro”.
             Por certo, com o fim do regime de exceção que antecedeu à atual ordem constitucional, verificou-se um vácuo institucional no interior da organização dos Poderes, consistente na ausência de um órgão capaz de, na defesa da recém-instituída democracia, se contrapor ao ímpeto do Executivo, á suscetibilidade do Legislativo e à inércia do Judiciário. Era necessário um órgão capaz de fazer frente às imperfeições inatas dos Poderes, mas sem constituir ele mesmo um novo Poder, de modo a manter íntegra a clássica divisão montesquiana. O Ministério Público, por decisão do constituinte, passou a ocupar essa lacuna, sendo dotado para esse fim com atributos próprios dos Poderes, em estreita semelhança com o Judiciário e a magistratura.
             A maneira como o Ministério Público desempenha suas funções na defesa da democracia varia de acordo com a evolução dos mecanismos colocados à sua disposição pela ordem jurídica. Destacam-se, porém, os meios processuais manejados perante o Poder Judiciário, consoante anota Mazzilli[3],
 A defesa do regime democrático pelo Ministério Público deve fazer-se em dois níveis, com desdobramentos que adiante pontaremos: a) controle de constitucionalidade das leis que violem princípio constitucional, a ser feito sob forma concentrada (especialmente por meio da propositura de ações diretas de inconstitucionalidade, de representações interventivas e de algumas ações civis públicas para defesa de interesses difusos); b) controle de constitucionalidade das leis que violem princípio constitucional, a ser feito sob forma difusa, caso a caso, impugnando-se as medidas e atos concretos que violem uma norma constitucional (especialmente por meio da ação penal, do inquérito civil e da ação civil pública para defesa de interesses sociais, difusos, coletivos e individuais homogêneos, além de outros mecanismos de fiscalização e controle afetos à instituição...)”.
             Com o fito de avaliar a efetividade da atuação do parquet na defesa da ordem democrática brasileira nas duas últimas décadas, convém trazer à baila os requisitos estabelecidos em 2002 pela Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas – substituída em 2006 pelo Conselho de Direitos Humanos – como sendo essenciais à existência efetiva de um regime democrático: a) respeito dos direitos humanos e das liberdades fundamentais; b) liberdade de associação; c) liberdade de expressão e de opinião; d) acesso ao poder e ao seu exercício, de acordo com o Estado de direito; e) realização de eleições livres, honestas e periódicas por sufrágio universal e voto secreto, reflexo da expressão da vontade do povo; f) um sistema pluralista de partidos e organizações políticas; g) separação de poderes; h) independência da justiça; i) transparência e responsabilidade da administração pública; e j) meios de comunicação social livres, independentes e pluralistas[4].
             Emparelhando de um lado os elementos dessa lista e de outro o atual quadro democrático vivido no Brasil, vê-se que o Ministério Público tem ainda um árduo caminho a trilhar. O fato de a Constituição o haver cometido formalmente da nobilíssima função de defender o regime democrático, de per si, não o torna essencial à democracia. Essa essencialidade não é do tipo que se adquire por decreto, mas que se conquista com atitudes concretas. Assim, mesmo reconhecendo a relevância constitucional do papel do Ministério Público, como referido nas linhas anteriores, em face de uma constituição tão jovem e de uma democracia tão incipiente, é prematuro dizer que o MP é essencial à democracia.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Comissão de Direito Humanos. Democracia e Direitos Humanos. Disponível em: <http://www.unric.org/pt/a-democracia-e-a-onu/29048-democracia-e-direitos-humanos>. Acesso em: 27 fev 2011.
MAZZILLI, Hugo Nigro. O Ministério Público e a defesa do regime democrático.  Artigo publicado na revista Justitia, do Ministério Público de São Paulo, vol. 179-180, p. 139 e s., jul-dez. 1997. Material da 2ª aula da disciplina Poder Judiciário e Funções Essenciais à Justiça, ministrada no Curso de Pós-Graduação Lato Sensu TeleVirtual em Direito Constitucional – Anhanguera-UNIDERP | REDE LFG.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 18. ed. São Paulo: Atlas, 2005.


[1] É curiosa, porém, a ausência de qualquer menção ao Ministério Público no Título V da Constituição, que trata “Da Defesa do Estado e Das Instituições Democráticas”, embora no mesmo título se discipline detalhadamente o papel da polícia e das forças armadas. É possível que se trate de uma inconsistência sistêmica da Constituição, pois a ordem democrática pela qual o MP ficou responsável por defender, inclui as instituições democráticas.
[2] In O Ministério Público e a defesa do regime democrático.  Artigo publicado na revista Justitia, do Ministério Público de São Paulo, vol. 179-180, p. 139 e s., jul-dez. 1997. Material da 2ª aula da disciplina Poder Judiciário e Funções Essenciais à Justiça, ministrada no Curso de Pós-Graduação Lato Sensu TeleVirtual em Direito Constitucional – Anhanguera-UNIDERP | REDE LFG. p. 2 e 3.
[3] Ibidem, p. 7.
[4] Comissão de Direito Humanos. Democracia e Direitos Humanos. Disponível em: <http://www.unric.org/pt/a-democracia-e-aonu/29048-democracia-e-direitos-humanos>. Acesso em: 27 fev 2011.

A extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo nos delitos contra a ordem tributária

             A pena é a consequência natural do exercício do ius puniendi do Estado em face da prática de uma conduta típica, antijurídica e culpável. Contudo, diante de certas situações previstas na legislação, o Estado pode abrir mão ou ficar impedido de exercer seu poder de punir, mesmo que reste perfeitamente configurada a infração penal. A cada uma dessas situações dá-se o nome de causa extintiva da punibilidade [1].
No âmbito do direito penal tributário, além das hipóteses usuais de extinção da punibilidade (art. 107 do CP), existe uma que tem causado muita polêmica na doutrina e jurisprudência: a extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo nos delitos contra a ordem tributária.
             Uma das razões para a divergência é a indefinição do legislador quanto à utilização de mecanismos típicos de direito penal no combate aos ilícitos tributários, ora inclinando-se para uma maior incidência de institutos penalizadores, ora dando maior relevo à repercussão meramente econômica desses ilícitos.
             A discussão é assim resumida por Hugo de Brito Machado[2], que anota a dualidade de posições quanto à necessidade/utilidade da criminalização do ilícito tributário:
De um lado os que pretendem um direito penal desprovido de utilitarismo, sustentando que admitir a extinção da punibilidade pelo pagamento implica favorecer os mais abastados, que poderão livrar-se da sanção pagando o tributo cobrado. De outro, os que sustentam que a criminalização do ilícito tributário é, na verdade, desprovida de conteúdo ético, prestando-se mesmo como instrumento para compelir o contribuinte ao pagamento do tributo e que, por isto, deve ser premiado o que paga porque permite seja alcançado o objetivo a final buscado com a cominação da sanção penal.
             A previsão do pagamento como causa extintiva da punibilidade foi trazida primeiramente pela Lei n. 4.729/65, que possibilitava a extinção da punibilidade sempre que o agente promovesse “o recolhimento do tributo devido, antes de ter início, na esfera administrativa, a ação fiscal própria” (art. 2º).
             Posteriormente, esse dispositivo foi revogado pela Lei n. 8.137/90, que definiu os crimes contra a ordem tributária. Essa lei, mais generosa que a anterior, possibilitava a extinção da punibilidade se o pagamento fosse feito em momento anterior ao recebimento da denúncia, conforme enuncia seu art. 14:
Art. 14. Extingue-se a punibilidade dos crimes definidos nos arts. 1° a 3° quando o agente promover o pagamento de tributo ou contribuição social, inclusive acessórios, antes do recebimento da denúncia.
             Exatamente um ano depois da promulgação da Lei n. 8.137/90, precisamente em 30 de dezembro de 1991, foi editada a Lei n. 8.383/91, revogando expressamente o art. 14 e extirpando do sistema a extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo. Do ponto de vista garantista, de um direito penal de ultima ratio, a medida constituiu nítido retrocesso, demonstrando mais uma vez que a matéria é norteada mais por seus efeitos sobre as contas públicas do que pelo desvalor da conduta, de per si.
             Não tardou muito para que em 1995 a Lei n. 9.249 (art. 34) reintroduzisse no ordenamento a previsão outrora revogada, restabelecendo a hipótese de extinção da punibilidade pelo pagamento, nos exatos termos da lei revogada.
Mais recentemente, o assunto foi outra vez objeto de modificação legislativa, sendo tratado pela Lei nº 10.684/03:
§ 2º. Extingue-se a punibilidade dos crimes referidos neste artigo quando a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos e contribuições sociais, inclusive acessórios.
             Esta última lei, ao silenciar-se acerca da ocasião oportuna para o pagamento, permitiu à jurisprudência interpretá-la no sentido de que, pago o tributo, independente do momento, fica extinta a punibilidade. Com efeito, esse foi o entendimento firmado na jurisprudência, a partir de precedente do STF[3]:
EMENTA: AÇÃO PENAL. Crime tributário. Tributo. Pagamento após o recebimento da denúncia. Extinção da punibilidade. Decretação. HC concedido de ofício para tal efeito. Aplicação retroativa do art. 9º da Lei federal nº 10.684/03, cc. art. 5º, XL, da CF, e art. 61 do CPP. O pagamento do tributo, a qualquer tempo, ainda que após o recebimento da denúncia, extingue a punibilidade do crime tributário. (HC 81929, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Rel. p/ acórdão:  Min. CEZAR PELUSO, Primeira Turma, julgado em 16/12/2003).
             Atualmente, portanto, ao menos até a próxima mutação legislativa, o pagamento integral do tributo tem como consequência inexorável a extinção da punibilidade dos crimes contra a ordem tributária, não importando o momento em que seja efetuado, podendo-se advogar, inclusive, que a extinção possa ocorrer após o trânsito em julgado e mesmo durante o cumprimento da pena.
             A consequência negativa dessa sistemática que utiliza o direito penal como meio intimidatório visando exclusivamente o pagamento do tributo, liberando o agente das consequências penais mediante o simples pagamento, privilegia o contribuinte infrator na medida em que permite sonegar sem maiores consequências, salvo o pagamento que já deveria ter ocorrido ab initio [4].

BIBLIOGRAFIA
GOMES, Luiz Flávio; BIANCHINI, Alice. Caso Marcos Valério. Crime previdenciário, pagamento e extinção da punibilidade. Jus Navigandi, Teresina, ano 13, n. 1660, 17 jan. 2008. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/10860>. Acesso em: 19 fev. 2011.
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal, vol. I. 11. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2009.
MACHADO, Hugo de Brito. Ilícito Tributário. In: Curso de Direito Tributário.  São Paulo: Ed. Malheiros.  31ª ed. Revista atualizada e  ampliada,  Capítulo  III,  p.  509  e  ss. Material  da  1ª  aula  da  Disciplina  Direito  Internacional Tributário  e  Direito  Penal  Tributário,  ministrada  no  Curso de   Pós-Graduação   Lato   Sensu   TeleVirtual   em   Direito Tributário – Universidade Anhanguera-Uniderp | REDE LFG.


[1] GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal, vol. I. 11. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2009, p. 709.
[2] Ilícito Tributário. In: Curso de Direito Tributário.  São Paulo: Ed. Malheiros.  31ª ed. Revista atualizada e  ampliada,  Capítulo  III,  p.  509  e  ss. Material  da  1ª  aula  da  Disciplina  Direito  Internacional Tributário  e  Direito  Penal  Tributário,  ministrada  no  Curso de   Pós-Graduação   Lato   Sensu   TeleVirtual   em   Direito Tributário – Universidade Anhanguera-Uniderp | REDE LFG.
[3] O STJ adotou o mesmo entendimento, pacificando a questão nos tribunais da jurisdição extraordinária, como se pode ver no RHC 15.631/SP, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 07/04/2005: “1. Extingue-se a punibilidade do réu, a qualquer tempo, em face do pagamento integral do débito fiscal objeto da ação penal ajuizada”.
[4] GOMES, Luiz Flávio; BIANCHINI, Alice. Caso Marcos Valério. Crime previdenciário, pagamento e extinção da punibilidade. Jus Navigandi, Teresina, ano 13, n. 1660, 17 jan. 2008. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/10860>. Acesso em: 19 fev. 2011.