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segunda-feira, 22 de novembro de 2010

A ADI e a ADC são consideradas ações dúplices?

            O controle concentrado ou abstrato de constitucionalidade no Brasil surgiu com a Emenda Constitucional n. 16 de 1965. No início era constituído apenas pela representação de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual, de competência do STF; e a legitimidade era exclusiva do Procurador-Geral da República.
            Com a promulgação da Constituição de 1988 o número de ações diretas aumentou consideravelmente, sendo acrescidas ao controle concentrado, originalmente, mais quatro ações: ação direita de inconstitucionalidade genérica – ADI (art. 102, I, a, primeira parte); ADI interventiva (art. 36, III); ADI por omissão (art. 103, 2º); e arguição de descumprimento de preceito fundamental – ADPF (art. 102, 1º). Posteriormente, a EC n. 3/93 criou a ação declaratória de constitucionalidade – ADC (art. 102, I, a, parte final).
            De todas essas ações duas ocupam papel de destaque, seja pela amplitude do objeto, seja pela frequência com que são manejadas perante os tribunais: a ação direta de inconstitucionalidade (ADI) e a declaratória de constitucionalidade (ADC).
            Mas não é apenas isso que essas espécies processuais têm em comum. Como já afirmado, as duas fazem parte do controle abstrato de constitucionalidade ou por via de ação, tendo como objeto leis ou atos normativos em tese (não existe um caso concreto) e são julgadas através de um processo objetivo (sem partes), pois não existem direitos subjetivos envolvidos. A competência e os legitimados são, igualmente, os mesmos. As duas são tratadas no mesmo dispositivo constitucional (art. 102, I, a) e a regulamentação se deu na mesma lei (Lei. 9.868/99).
            Quanto aos efeitos, a correspondência entre ambas é de tal maneira que, tanto uma como a outra, conquanto partindo de pedidos opostos, podem levar ao mesmo resultado: a declaração da constitucionalidade ou inconstitucionalidade de um ato normativo, como se depreende do art. 24 da Lei 9.868/99:
Art. 24. Proclamada a constitucionalidade, julgar-se-á improcedente a ação direta ou procedente eventual ação declaratória; e, proclamada a inconstitucionalidade, julgar-se-á procedente a ação direta ou improcedente eventual ação declaratória.
            Diante de tantas semelhanças, André Ramos Tavares[1] chega mesmo a propor a unificação das duas ações, sob a nomenclatura de ação direta de controle de constitucionalidade:
Ora, se assim é, teria sido mais corajosa a Reforma do Judiciário [EC n. 45] se tivesse eliminado essa duplicidade de ações para alcançar os mesmos objetivos. Seria o caso de criar-se uma ação direta de controle da constitucionalidade de leis ou atos normativos. Seu pedido poderia ser tanto num sentido quanto noutro.
            Essa profunda identidade, especialmente quanto ao duplo resultado possível, tem levado a doutrina e a jurisprudência a denominá-las através de qualitativos que realçam essa bipolaridade, como ações dúplices, ambivalentes, bifrontes, de sinal trocado, siamesas, etc.
            Mas essas ações são de fato dúplices? O que são ações dúplices?
           Fredie Didier Jr.[2] assinala que a expressão ação dúplice pode ser compreendida em duas acepções: processual e material. Em sentido processual, uma ação será dúplice sempre que o procedimento permitir que o réu formule demanda contra o autor dentro da própria contestação. Nesse sentido, ação dúplice é sinônimo de pedido contraposto.
            Já em sentido material, leciona o autor, são ações
em que a condição dos litigantes é a mesma, não se podendo falar em autor e réu, pois ambos assumem concomitantemente as duas posições. Esta situação decorre da pretensão deduzida em Juízo. A discussão judicial propiciará o bem da vida a uma das partes, independente de suas posições processuais. A simples defesa do réu implica no exercício de pretensão (não há pedido do sujeito passivo), porquanto a sua pretensão já se encontra inserida no objeto do processo com a formulação do autor.
            Segundo esta acepção, todas as ações meramente declaratórias são dúplices, já que a decisão proferida implicará, necessariamente, na afirmação ou negação do direito que se quer ver declarado. Essa é a lição de Pontes de Miranda[3], acerca da finalidade das ações declaratórias:
as ações declarativas têm como elemento predominante o de enunciado de fato: ou nelas se diz, em primeira plana que algo existe, ou que algo não existe. Sim, ou não (...) o que se colima, com a ação declarativa, é estabelecer-se a certeza no mundo jurídico (...). Afastam-se dúvidas, de modo que há sempre o enunciado existencial: é, ou não é.
            De acordo com a classificação proposta por Fredie Didier, a ADI e a ADC são ações dúplices em sentido material, pois “uma vez fixada a conclusão sobre a constitucionalidade ou não do ato impugnado, os efeitos das decisões proferidas em cada uma dessas ações serão absolutamente idênticos” [4]. Noutras palavras, como afirmado, a procedência da ADI equivale exatamente à improcedência da ADC, e vice-versa.
            Vale mencionar, afinal, que a despeito das inúmeras semelhanças, a ADI e a ADC possuem particularidades que as singularizam. Uma diferença é que o objeto da ADC é mais restrito, por destinar-se unicamente à análise da constitucionalidade de normas federais (CF, 102, I, a, parte final), à medida em que a ADI serve para aferir a compatibilidade de normas federais e estaduais, indistintamente.
Mas o principal ponto distintivo entre as duas ações diz respeito, naturalmente, ao escopo de cada uma. Na ADI se busca a declaração de invalidade da norma em face de sua incompatibilidade com o texto constitucional; já na ADC o pedido é justamente o contrário – visa-se a confirmação de sua constitucionalidade. Disso resulta que a ADC opera em favor do princípio da presunção de constitucionalidade das leis e atos normativos; ao passo que a ADI serve para afastar definitivamente tal presunção, que é relativa. Como consequência prática dessa polarização, tem-se que não é obrigatória, em regra, a citação do Advogado-Geral da União para atuar como curador especial da constitucionalidade da norma (art. 12-E, par. 2º, da Lei 9.868/99), uma vez que ela já fora afirmada na inicial.
Portanto, sem sombra de dúvidas essas duas ações do controle concentrado são dúplices.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
TAVARES, André Ramos. ADI versus ADC. Disponível em: <http://www.cartaforense.com.br/ Materia.aspx?id=132>. Acesso em: 17 nov. 2010.
DIDIER JÚNIOR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil: teoria geral do processo e processo de conhecimento.  8. ed. Salvador: Editora JusPODIVM. p. 189. 1 v.
MIRANDA, Pontes de. Tratado das Ações: ações declarativas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1971. p. 5. t 2.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 18. ed. São Paulo: Atlas, 2005.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Os efeitos da decisão desfavorável ao Fisco no processo administrativo tributário

            O Estado brasileiro é politicamente organizado na forma de três Poderes ou órgãos de soberania (CF, art. 2º). A cada Poder do Estado foi atribuída determinada função: executiva, legislativa ou judiciária, mas essa função não é exercida com exclusividade. Ccada órgão exerce preponderantemente uma função (típica), e secundariamente as outras duas (funções atípicas).
            O processo administrativo tributário (PAT) é o exercício pelo Poder Executivo da função atípica de julgar, no que a doutrina tem denominado de função “quase-jurisdicional”[1], pela similitude que esse procedimento guarda com o processo judicial.
            Levando em consideração que o Estado é o todo-poderoso detentor da prerrogativa de efetuar o lançamento (CTN, art. 142), cuja função é fazer nascer o crédito tributário, do qual o próprio Estado é o titular, o processo administrativo tributário objetiva amenizar essa unilateralidade, assegurando ao cidadão, através de garantias processuais-constitucionais, um mecanismo de controle da legalidade dos atos do Fisco, proporcionando maior segurança jurídica na relação Estado-contribuinte[2].
            Sob essa perspectiva, o PAT é uma garantia assegurada ao contribuinte[3].
            Seu início se dá, em geral, por meio de uma impugnação ao lançamento, cujo propósito é extinguir ou minorar o crédito tributário, e se finda com uma decisão em que o órgão julgador acolhe ou rejeita a pretensão do contribuinte.
            Naturalmente, se o contribuinte não alcançar êxito no processo administrativo, poderá recorrer ao Poder Judiciário (CF, art. 5º, XXXV), com vistas a ver resguardados  seus interesses. Sendo integralmente acolhida a aspiração do contribuinte, e superada a possibilidade de recursos, o crédito tributário estará extinto, nos termos do art. 156, IX do CTN:
Art. 156. Extinguem o crédito tributário:
(...)
IX - a decisão administrativa irreformável, assim entendida a definitiva na órbita administrativa, que não mais possa ser objeto de ação anulatória;
            Mas e se a decisão do contencioso administrativo for desfavorável ao Fisco, a Fazenda poderá se valer da tutela jurisdicional para desconstituí-la?
            O assunto, de longa data conhecido da doutrina, ganhou ares de polêmica com a edição do Parecer PGFN/CRJ n. 1.087/2004, que autorizou a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional a ajuizar ação de conhecimento e mandado de segurança contra decisões administrativas em matérias tributárias que “causassem lesão ao patrimônio público”, no que diz respeito à legalidade, juridicidade, ou diante de erro de fato. O parecer causou certa celeuma entre os juristas, ocasionando um cisão entre os que aquiesceram o entendimento da Fazenda e os que veementemente o rechaçaram.
            Os que advogam essa tese se fundamentam no fato de que as decisões dos órgãos colegiados de representação paritária - de formação heterogênea, compostos de representantes da Fazenda e dos contribuintes -, não refletem a vontade definitiva da Administração Fazendária no que concerne à exigibilidade do crédito tributário. Negam a teoria da coisa julgada administrativa e argumentam que a universalidade da jurisdição e o seu acesso, na medida em que vale para o contribuinte, vale também para o Estado, sendo facultado à Fazenda lançar mão de ações às instâncias judiciárias para ver desconstituídas as decisões administrativas desfavoráveis pronunciadas por esses órgãos mistos. Entre os autores que endossam essa ideia, são citados por Líria Kédina C. de S. e Moraes[4]: Aurélio Pitanga Seixas Filho, Edvaldo Brito, Lídia Maria Ribas, Rubens Gomes de Sousa, Gilberto de Ulhôa Canto, Celso Ribeiro Bastos e Michel Temer.
            Contudo, a despeito da autoridade destes autores e do brilhantismo de seus argumentos, parece ser outro o posicionamento da maioria da doutrina.
            Para Celso Antônio Bandeira de Mello[5], a coisa julgada administrativa ocorre quando, relativamente a algum ato administrativo, “a Administração fica impedida não só de retratar-se dele na esfera administrativa, mas também de questioná-lo judicialmente”. Os princípios da segurança jurídica e da boa fé são seus fundamentos básicos. Segundo o autor, sua ocorrência “é particularmente óbvia em face de decisões de órgãos colegiais em que há participação dos administrados”, os quais a lei estruturou desse modo visando uma solução imparcial dos litígios.
            Acompanham o eminente juspublicista, negando à Administração Fazendária a prerrogativa de tentar cindir judicialmente decisão desfavorável no contencioso administrativo: Paulo de Barros Carvalho, Ives Gandra, Eduardo Bottalo, Ruy Barbosa Nogueira, Laudio Camargo Fabretti, Djalma Bittar, Ricardo Lobo Torres, Marco Aurélio Greco, Hugo de Brito Machado, José Eduardo Soares de Mello, Sacha Calmon, Alberto Xavier, entre outros[6].
            Os fundamentos dessa corrente partem, em geral, de compreensões extraídas da teoria do órgão e da impossibilidade de órgãos pertencentes à mesma pessoa jurídica litigarem judicialmente entre si[7]. Com efeito, no âmbito federal, tanto a Procuradoria da Fazenda Nacional, quanto o Conselho de Recursos Fiscais (Conselho de Contribuintes) e a Câmara Superior de Recursos Fiscais, vinculam-se ao Ministério da Fazenda, órgão do Poder Executivo, submetidos à mesma personalidade jurídica, a União. Sendo assim, não haveria possibilidade de a Procuradoria da Fazenda ingressar em juízo contra decisão do Conselho de Contribuintes, devido à falta de uma das condições da ação, o interesse de agir.
            Mais do que obstáculos processuais, aduzem esses autores que é preciso contextualizar a teoria da separação de poderes, reconhecendo ao Executivo atribuições que não sejam meramente administrativas ou de execução, como a função de julgamento que se encontra prevista expressamente no inciso LV do art. 5º da Constituição, onde se faz referência explícita ao processo administrativo. Do mesmo modo, é função do Executivo realizar a justiça, especialmente no processo administrativo fiscal, em que os órgãos de julgamento “não atuam no interesse do Estado-Administração, porque desempenham atividade quase-jurisdicional” [8], de acordo com o interesse público primário da coletividade.
            Além disso, a inafastabilidade da jurisdição é um direito do cidadão contra o Estado, jamais deste contra aquele, como quer indicar a tolopologia do preceito constitucional (CF, art. 5º, XXXV), inserido no capítulo dos direitos e garantias individuais. Se quisesse se colocar em nível de igualdade com o cidadão, deveria o Fisco despir-se de prerrogativas como a autotutela e a autoexecutoridade de seus atos, que, em regra, o fazem prescindir do Judiciário.
            Por fim, alega-se que se a irresignação da Fazenda fosse sempre levada a juízo, constituiria mais um privilégio para o crédito tributário e acabaria por esvaziar por completo o processo administrativo, desestimulando os contribuintes a buscar esta via e ocasionando mais abarrotamento e morosidade ao Poder Judiciário, o que justamente o PAT buscou evitar.
            A jurisprudência do STJ[9], embora obter dictum,  também dá sinais de filiar-se a esta tese:
ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL. CONSELHO DE CONTRIBUINTES. DECISÃO CONTRÁRIA À FAZENDA ESTADUAL. RECURSO HIERÁRQUICO. SECRETÁRIO ESTADUAL DE FAZENDA. REFORMA DE MÉRITO. POSSIBILIDADE.
1. É pacífico nesta Corte Superior o entendimento segundo o qual é possível a reforma da decisão do Conselho de Contribuintes pelo Secretário Estadual de Fazenda por meio de interposição de recurso hierárquico, na forma prevista no Código Tributário Estadual do Rio de Janeiro.
2. Tem-se aí a única conclusão possível porque, se ao contribuinte é dado recorrer ao Judiciário em caso de decisão contrária a seus interesses, a Fazenda não pode fazê-lo com o objetivo de anular atos próprios.
AgRg no RMS 26512 / RJ. Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES. Órgão Julgador T2 - SEGUNDA TURMA Data do Julgamento 15/09/2009. Data da Publicação/Fonte DJe 27/04/2010.
            De posse dos argumentos das duas correntes, pode-se perceber que a controvérsia, no fundo, é erigida sobre dois questionamentos: a) o Conselho de Contribuintes é um órgão da Administração tanto quanto a Procuradoria da Fazenda? E b) Caso seja, de qual dos dois órgãos será a vontade autorizada e definitiva, no âmbito do Poder Executivo, acerca da validade e exigência do crédito tributário?
            É de se concluir, no entanto, que maior razão assiste à segunda corrente, que nega ao Fisco a possibilidade revisar judicialmente suas próprias decisões no PAT. Tal conclusão parte da premissa de que a vontade do Conselho de Contribuintes é a vontade da própria Administração, não por outra razão: o Conselho é parte integrante da Administração Fazendária.
            Com efeito, somente a Constituição tem o poder de outorgar aos entes políticos a competência para instituir tributos (CF, arts. 153 a 156). Uma vez concedida essa competência ela é indelegável (CTN, art. 7º), nenhum ente pode transferir a outrem a responsabilidade de criar tributos, tampouco a competência de solucionar os litígios surgidos em razão de tributo de sua competência. Logo, a capacidade de decidir no contencioso administrativo tributário, que é um mecanismo que cada Ente dispõe para realizar o controle[10] de suas exações, também é indelegável.
            Corrobora com essa linha de raciocínio o art. 13, II da Lei 9.784/99. O processo administrativo tributário é organizado de forma escalonada, de modo a possibilitar que o litigante vencido leve suas razões às instâncias recursais, e, segundo o dispositivo mencionado, a atividade decisória em sede de recurso não pode ser delegada:
Art. 13. Não podem ser objeto de delegação:
(...)       
II - a decisão de recursos administrativos;
            A conclusão mais evidente é que, sendo indelegável a capacidade de decidir no PAT, os órgãos que ali atuam só podem pertencer aos quadros do próprio ente competente para instituir e cobrar o tributo, do contrário haveria flagrante violação da lei e da lógica do processo administrativo. Logo, o Conselho de Contribuintes é um órgão como qualquer outro da Administração Fazendária, se estranho fosse estaria agindo ilegalmente ou mediante delegação indevida.
             O fato de o Conselho ser um órgão heterogêneo não desnatura sua vocação administrativa, pelo contrário, essa característica tem sido um fator de legitimação e confiabilidade diante do contribuinte. Sem contar que os membros do Conselho de Contribuintes são devidamente nomeados e empossados, o que lhes confere vínculo e regime de servidores públicos, para todos os efeitos. A maneira como o PAT foi estruturado, com uma segunda estância mista, foi um opção feito pelo legislador com vistas a estabelecer um contencioso democrático e imparcial. Assim, independentemente de sua formação, a decisão do Conselho reflete a vontade da Administração, porque assim o legislador o quis.
            No tocante ao segundo questionamento, é notório que na grande estrutura administrativa do Poder Executivo, ocorre de diversos órgãos se manifestarem acerca de determinado assunto, não raras vezes de modo conflitante. Contudo, tratando-se de competência exclusiva, apenas uma manifestação volitiva prevalecerá como vontade final da pessoa jurídica a que pertencem os órgãos.
            No caso, o conflito que se apresenta é entre a vontade apurada no PAT, constante da decisão do Conselho de Contribuintes (ou de órgão de instância especial); e, de outro lado, a vontade da Procuradoria da Fazenda, que rejeita a decisão desfavorável ao Fisco.
            Observe que este não é mais o litígio que originou o processo administrativo tributário, pois já não subsiste a relação jurídica inicial entre o Fisco e o contribuinte, cuja pretensão fora acolhida no PAT, acarretando a extinção do crédito tributário. A persistência de eventual conflito será apenas interorgânico, e, diga-se de passagem, meramente de fato, considerando que a lei já lhe dera solução definitiva, segundo as fórmulas do art. 156, IX do CTN, já mencionado, e do art. 42 do Decreto n. 70.235/72, que cuida da eficácia das decisões no PAT:
Art. 42. São definitivas as decisões:
I – de primeira instância, esgotado o prazo para recurso voluntário sem que este tenha sido interposto;
II – de segunda instância, de que não caiba recurso ou, se cabível, quando decorrido o prazo sem sua interposição;
III – de instância especial.
            Sem sombra de dúvidas, a lei previu que a vontade definitiva, isto é, a vontade última e autorizada sobre o assunto do crédito tributário é a do órgão colegiado recursal atuante no PAT e não a da Procuradoria da Fazenda, que deverá submeter-se resignadamente – repita-se –, como quis o legislador.
            Desse modo, findo o processo administrativo tributário, a Administração jamais restará vencida ou perdedora, porque seja qual for o sentido da decisão, será sempre a decisão da Administração, nada havendo que justifique provocação do Judiciário. A pacificação do litígio resultou na determinação de uma vontade administrativa, única  e definitiva, cujo teor pode coincidir com a dos agentes do Fisco ou não.
            Por último, cabe salientar que a decisão definitiva no PAT não está imune à apreciação do Judiciário, que, além dos meios disponibilizados ao contribuinte, em caso de grave lesão ao patrimônio público, poderá ser provocado por meio de ação civil pública proposta pelo Ministério Público (CF, art. 129, III).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 21 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris Editora, 2009.
MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário.  28  ed.  São  Paulo: Malheiros, 2007.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 29 ed. São Paulo: Malheiros, 2004.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 26. ed. São Paulo: Malheiros, 2009.
MUSSOLINI JÚNIOR, Luiz Fernando. Processo administrativo tributário. Das decisões terminativas contrárias à Fazenda Pública. Barueri, SP: Manole, 2004.
SABBAG, Eduardo de Moraes.  Manual de Direito Tributário. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
SOUSA E MORAES, Líria Kédina Cuimar. Coisa julgada no processo administrativo tributário brasileiro: uma análise sobre o efeito das decisões contrárias à fazenda pública. Belém: Universidade da Amazônia – UNAMA, 2007. Dissertação (mestrado). Disponível em: <http://www.unama.br/mestrado/mestrado/mestradoDireito/dissertacoes/PDF/2007/coisa-julgada-no-processo-administrativo-tributario-brasileiro-uma-analise-sobre-o-efeito-das-decisoes-contrarias-a-fazenda-publica.pdf>. Acesso em: 15 nov. 2010.


[1] MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário.  28  ed.  São  Paulo: Malheiros, 2007. p. 436.
[2] SABBAG, Eduardo de Moraes.  Manual de Direito Tributário. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 1070.
[3] Num sentido mais abrangente, Hely Lopes Meirelles (2004, p. 672) conceitua o processo administrativo fiscal como “aquele que se destina à determinação, exigência ou dispensa do crédito fiscal, bem como à fixação do alcance de normas de tributação em casos concretos, pelos órgãos competentes tributantes, ou à imposição de penalidade ao contribuinte”.
[4] SOUSA E MORAES, Líria Kédina Cuimar. Coisa julgada no processo administrativo tributário brasileiro: uma análise sobre o efeito das decisões contrárias à fazenda pública. Belém: Universidade da Amazônia – UNAMA, 2007. Dissertação (mestrado). p. 73. Disponível em: <http://www.unama.br/mestrado/mestrado/mestradoDireito/dissertacoes/PDF/2007/coisa-julgada-no-processo-administrativo-tributario-brasileiro-uma-analise-sobre-o-efeito-das-decisoes-contrarias-a-fazenda-publica.pdf>. Acesso em: 15 nov. 2010.
[5] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 26. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 453.
[6] Citados em MUSSOLINI JÚNIOR, Luiz Fernando. Processo administrativo tributário. Das decisões terminativas contrárias à Fazenda Pública. Barueri, SP: Manole, 2004.
[7] Não se desconhece nesse trabalho que há algum tempo “tem evoluído a ideia de conferir capacidade a órgãos públicos para certos tipos de litígio (...), como a impetração de mandado de segurança por órgãos públicos de natureza constitucional, quando se trata da defesa de sua competência, violada por outro órgão”. Todavia “essa excepcional personalidade judiciária só é aceita em relação aos órgãos mais elevados do Poder Público, de envergadura constitucional”. (CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 21 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris Editora, 2009. p. 15.
[8] MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário.  28  ed.  São  Paulo: Malheiros, 2007. p. 476.
[9] Ver também: ROMS n. 13.592 – RJ e n. 26.228 – RJ.
[10]MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 29 ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 672.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

A (in)constitucionalidade das taxas de lixo e de limpeza de logradouro

A taxa é um tributo de competência comum da União, Estados, Municípios e Distrito Federal. Sua cobrança se dá em razão do exercício regular do poder de polícia, ou da utilização de serviço público específico e divisível, usufruído efetivamente pelo contribuinte ou posto à sua disposição (utilização potencial), nesta hipótese se os serviços forem de utilização compulsória. Sua previsão constitucional encontra-se no art. 145, II, da Constituição Federal.

Desse conceito extrai-se que existem duas espécies de taxa: a) taxa de polícia ou de fiscalização e b) taxa de serviço ou de utilização. A primeira é “cobrada em razão da atividade do Estado, que verifica o cumprimento das exigências legais pertinentes e concede a licença, a autorização, o alvará e etc”[1]. Já a taxa de serviço presta-se a remunerar a utilização de um serviço público, específico e divisível, consoante o caput do art. 77 do CTN.

Juntamente com a contribuição de melhoria, a taxa é classificada como um tributo vinculado, pois atinente a uma prestação estatal direta e específica ao contribuinte. Nesse sentido diferencia-se dos impostos, cujo produto da arrecadação é destinado ao custeio das despesas gerais do Estado, sendo, portanto, um tributo não vinculado a uma prestação estatal individualmente direcionada. Noutros termos, na cobrança da taxa “o Estado atua, de modo especial, em função da pessoa do contribuinte”[2].

A Constituição, além ter inserido a taxa na competência comum dos entes federativos nas três esferas de governo, não estabeleceu um rol taxativo de atividades que, se desempenhadas pelo Poder Público de forma específica e divisível, viessem a ensejar remuneração por meio desse tributo. No caso da taxa de utilização, como são variadíssimos os serviços prestados pela Administração, individualizadamente aos usuários, é um tributo fartamente utilizado pela Administração. Contudo, em alguns casos o emprego dessa espécie tributária não tem encontrado amparo constitucional na jurisprudência.

A taxa de coleta de lixo é um exemplo de taxa de serviço que quando foi criada gerou muita polêmica. A primeira questão enfrentada foi a de saber se se tratava de um serviço específico e divisível. O Supremo Tribunal Federal declarou constitucional a exação, afirmando que seu fato gerador preenche os requisitos da especificidade e divisibilidade (ver AI 551.560/SP, AI 613.379-AgR/RJ e AI 636.528-2 AgR/RJ). Ainda com relação a essa taxa, outra questão debatida foi a possibilidade de ela se apropriar de elementos do IPTU para fins de determinação de sua base de cálculo, especificamente, a utilização da metragem do imóvel na apuração do valor devido. O Supremo novamente posicionou-se pela constitucionalidade das “taxas que, na apuração do montante devido, adote (sic) um ou mais dos elementos que compõem a base de cálculo de determinado imposto, desde que não se verifique identidade integral entre a base de cálculo da taxa e a do imposto” (RE 557957 AgR/SP).

Hipótese relacionada a esta e que também foi enfrentada pelo STF é a da taxa de serviços de conservação e limpeza de logradouros e bens públicos, instituída em razão de atividades como varrição, lavagem, capinação, desentupimento de bueiros e bocas de lobo. A jurisprudência do Supremo, diversamente, decidiu pela inconstitucionalidade dessa taxa, pacificando a questão nos seguintes termos:
TRIBUTÁRIO. MUNICÍPIO DO RIO DE JANEIRO. ILEGALIDADE DA TAXA DE COLETA DE LIXO E LIMPEZA PÚBLICA. ART. 145, II, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Tributo vinculado não apenas à coleta de lixo domiciliar, mas também à limpeza de logradouros públicos, hipótese em que os serviços são executados em benefício da população em geral (uti universi), sem possibilidade de individualização dos respectivos usuários e, consequentemente, da referibilidade a contribuintes determinados, não se prestando para custeio mediante taxa. (AI 636528 AgR, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, jun 2009).
Como se vê, a taxa de coleta domiciliar de lixo e a taxa de conservação e limpeza de logradouros e bens públicos, embora semelhantes, são essencialmente distintas. As diferenças se dão por conta de a segunda não preencher os requisitos constitucionais e legais característicos das taxas, nomeadamente, a especificidade e a divisibilidade. Com efeito, o serviço de limpeza e conservação de vias públicas não se ajusta ao modelo constitucional. Sendo os logradouros bens públicos de uso comum do povo (CC, art. 99, I), seu uso é feito indistintamente pela população em geral, e qualquer benfeitoria neles realizada aproveita a todos os usuários, residentes ou não; contribuintes ou não. São, portanto, atividades prestadas uti universi, não se revelando possível a indicação concreta dos destinatários do serviço.

Conclui-se, assim, que falta à taxa de conservação e limpeza de logradouros e bens públicos a necessária referibilidade da prestação e a possibilidade de quantificação do benefício auferido individualmente pelo contribuinte. Dessa forma, a remuneração dessas atividades deve ser feita por meio das receitas públicas provenientes dos impostos. É de se anotar, ainda, que nada impede às municipalidades, através de expediente conhecido e bem sucedido, pressionarem o Governo Central a propor emenda à Constituição permitindo a instituição de tal tributo na forma de contribuição, a exemplo do que aconteceu com a antiga taxa de iluminação pública.

[1] AMARO, Luciano. Apud SABBAG, Eduardo de Moraes. Manual de Direito Tributário. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 408.
[2] COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. As espécies tributárias: os impostos, as taxas e as contribuições. In: Curso de Direito Tributário Brasileiro. 9. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2006. p. 439-473. Material da 3ª aula da Disciplina Sistema Constitucional Tributário: Competência Tributária e Tributos, ministrada no curso de Pós-graduação Lato Sensu Televirtual em Direito Tributário – Anhanguera-Uniderp|Rede LFG.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

A alteração da data de pagamento do tributo deve respeitar o princípio da estrita legalidade tributária?

         O princípio da legalidade é a “nota essencial do Estado de Direito”[1]. Sua importância é revelada na maneira como a Constituição Federal o agasalha entre os direitos e garantias individuais no art. 5º, II, segundo o qual “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. A máxima constitucional proclama o grande dogma do estado democrático de direito de que todos estão sujeitos à Constituição e às leis, formas por excelência de expressão da vontade popular. Eis os contornos gerais do princípio da legalidade.
         Mas esse princípio é reproduzido noutros pontos do texto constitucional, desdobrando-se para adequar-se a ambientes normativos peculiares onde recebe arestas mais específicas. É o que ocorre no âmbito tributário, onde o princípio encontra-se (adaptado) no art. 150, I:
Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, aos Municípios e ao Distrito Federal:
I – exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça;
         Para além do conceito de legalidade está o de reserva de lei, também chamada legalidade em sentido estrito, tipicidade fechada (regrada ou cerrada) e reserva legal. Conquanto sejam semelhantes, os conceitos não se confundem. Utilizando-se da lição de José Afonso da Silva, “o primeiro significa a submissão e o respeito à lei, ou a atuação dentro da esfera estabelecida pelo legislador. O segundo consiste em estatuir que a regulamentação de determinadas matérias há de se fazer necessariamente por lei formal”. Significa dizer que as matérias adstritas à reserva de lei não poderão ser dispostas por outro instrumento senão por lei formal originada através de processo legislativo próprio e emanado de órgão legislativo constitucional.
         Como percebe, o princípio da legalidade norteia a cobrança dos tributos. Alguns elementos do tributo, contudo, estão rigorosamente atados à legalidade restrita, nos termos do art. 97 do CTN:
Art. 97. Somente a lei pode estabelecer:
I - a instituição de tributos, ou a sua extinção;
II - a majoração de tributos, ou sua redução, ressalvado o disposto nos artigos 21, 26, 39, 57 e 65;
III - a definição do fato gerador da obrigação tributária principal, ressalvado o disposto no inciso I do § 3º do artigo 52, e do seu sujeito passivo;
IV - a fixação de alíquota do tributo e da sua base de cálculo, ressalvado o disposto nos artigos 21, 26, 39, 57 e 65;
V - a cominação de penalidades para as ações ou omissões contrárias a seus dispositivos, ou para outras infrações nela definidas;
VI - as hipóteses de exclusão, suspensão e extinção de créditos tributários, ou de dispensa ou redução de penalidades.
         Da leitura desse artigo extrai-se necessariamente duas implicações: a) primeiro, a alíquota, a base de cálculo, o sujeito passivo e o fato gerador são os elementos estruturantes do tributo, estão na base de sua formação, sem eles sequer o tributo existe; b) em segundo lugar, como consequência direta da primeira afirmação, a determinação desses elementos não pode se dar através de ato infralegal. A segurança jurídica requerida pela imposição de tributos não se satisfaz com a lei em sentido material, apenas por ser abstrata e impessoal, exige sim a lei formal com todos os caracteres anteriormente mencionados.   Quanto a isto não há dúvida.
         Porém, questão que tem despertado calorosas discussões jurisprudenciais e doutrinárias está em se saber se o prazo é um elemento essencial na composição da espécie tributária. O prazo para o pagamento do tributo, embora não integrante do rol do art. 97, requer lei formal para sua estipulação? A alteração da data de pagamento do tributo deve respeitar o princípio da estrita legalidade tributária?
         Esclarecedora na compreensão do tema é a leitura dos votos dos ministros do Supremo Tribunal Federal no RE 140669 PB, em que se discutiu a constitucionalidade do art. 66 da Lei 7.450/85 que autorizou o Ministério da Fazenda a fixar o prazo de recolhimento do IPI, e da Portaria n. 266/88/MF, pela qual dito prazo foi fixado pela dita autoridade de modo diferente do previsto no DL 326/67. Nesse julgado decidiu-se por maioria de votos pela constitucionalidade da delegação feita pela Lei 7.450/85.
         Veja-se como a matéria restou acordada:
EMENTA: TRIBUTÁRIO. IPI. ART. 66 DA LEI Nº 7.450/85, QUE AUTORIZOU O MINISTRO DA FAZENDA A FIXAR PRAZO DE RECOLHIMENTO DO IPI, E PORTARIA Nº 266/88/MF, PELA QUAL DITO PRAZO FOI FIXADO PELA MENCIONADA AUTORIDADE. ACÓRDÃO QUE TEVE OS REFERIDOS ATOS POR INCONSTITUCIONAIS. Elemento do tributo em apreço que, conquanto não submetido pela Constituição ao princípio da reserva legal, fora legalizado pela Lei nº 4.502/64 e assim permaneceu até a edição da Lei nº 7.450/85, que, no art. 66, o deslegalizou, permitindo que sua fixação ou alteração se processasse por meio da legislação tributária (CTN, art. 160), expressão que compreende não apenas as leis, mas também os decretos e as normas complementares (CTN, art. 96). Orientação contrariada pelo acórdão recorrido. Recurso conhecido e provido.
         Os votos vencedores pautaram-se na sólida argumentação de que o prazo de vencimento do tributo, estando fora do rol do art. 97, não demanda a proteção emprestada pela técnica da reserva de lei. Portanto, os critérios e prazos para o recolhimento do tributo só podem estar compreendidos na expressão “legislação tributária” conceituada no art. 96 do CTN, que abrange não só as leis, mas “os tratados e as convenções internacionais, os decretos e as normas complementares que versem, no todo ou em parte, sobre tributos e relações jurídicas a eles pertinentes”. Esse raciocínio é corroborado pelo art. 160 do mesmo CTN cuja redação prevê o prazo de 30 dias para o vencimento do crédito tributário, “quando a legislação tributária não fixar o tempo do pagamento”.
         Contudo, os votos discordantes dos ministros Marco Aurélio, Sepúlveda Pertence e Carlos Velloso não permitiram que o assunto se resolvesse sem inquietações.
         A principal vertente argumentativa do voto do Min. Marco Aurélio, condutor da divergência, é a impossibilidade de delegar-se a autoridade administrativa a faculdade de alterar o prazo para o adimplemento do tributo, por tratar-se de matéria afeta à reserva de lei, nos termos do art. 48, inciso I da Constituição Federal. Segundo o ministro, citando Carlos Eduardo Manfredini e Roberto Catalano Botelho Ferraz, “não faz sentido ‘exigir a legalidade para definir todos os ângulos estruturais do tributo e dispensá-lo para o momento da consumação do sacrifício patrimonial do particular’”. Assentou como premissa de seu voto que o prazo do pagamento da exação está inserido no âmbito da competência indelegável do Congresso Nacional para dispor sobre “arrecadação e distribuição de rendas”.
         Pode-se pinçar ainda do julgado, no mesmo sentido, o argumento do Min. Carlos Velloso, segundo quem “a delegação legislativa com legitimidade constitucional é aquela inscrita na Constituição”, arrematando que se não há na Constituição comando autorizando a delegação (da faculdade de dispor sobre o prazo do tributo), tal delegação é inconstitucional.
         Conquanto não integre o rol do art. 97, certamente o momento consumativo da imiscuição estatal no patrimônio do particular reveste-se da maior relevância. Basta se questionar se é possível a existência de um tributo sem prazo para ser cobrado? Se existir, de que vale um tributo sem data para pagamento? Ou ainda, o prazo de um tributo pode ser alterado a qualquer tempo e sem qualquer formalidade?   A resposta honesta a estas questões espanca qualquer dúvida sobre o fato de que a importância do momento do pagamento do tributo requer seja o mesmo revestido de alto grau de segurança jurídica, recomendando, portanto, a proteção da lei em sentido estrito.
         Para concluir, em reforço aos argumentos expendidos pelos eminentes ministros do Supremo, deve-se relembrar que a questão do tributo no tempo é tão importante que a Constituição lhe dedicou um elaborado sistema de institutos visando fortalecer a noção de segurança jurídica e impedir que o cidadão seja tributado inopinadamente. Trata-se do princípio da anterioridade tributária, anual e nonagesimal, também chamado princípio da não-surpresa.
         Como afirma Sabbag[2]:
De fato, a noção de segurança jurídica alastra-se por todo o ordenamento jurídico, em todas as direções, influenciando sobremaneira alguns postulados, em matéria tributária, com os quais se entrelaça ou, ainda, nos quais se desdobra, v.g., o próprio principio da anterioridade tributária. 
         É também o que se leciona Paulo de Barros Carvalho:
a anterioridade objetiva implementar o sobreprincípio da  segurança jurídica, de  modo  que  o  contribuinte  não  seja surpreendido com exigência tributária inesperada.
         Se o constituinte não se furtou de estabelecer parâmetros rígidos para a implementação do tributo no tempo, evitando conceder à autoridade administrativa ampla liberdade para determinar o início da incidência temporal do tributo, tampouco pode o legislador ordinário esquivar-se de tal atribuição.


[1] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional positivo. 24. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 420.
[2] SABBAG, Eduardo de Moraes.  Princípio da legalidade tributária.  Fonte: Manual de Direito Tributário.  São Paulo: Saraiva, 2009, pp. 23-50. Material da 1ª aula da disciplina “Sistema constitucional Tributário: Princípios e Imunidades”, ministrada no curso de pós-graduação lato sensu televirtual em Direito Tributário – Anhanguera - Uniderp|Rede LFG.

É admissível a progressividade no ITCMD, mesmo sem previsão constitucional?

         A progressividade é uma técnica de incidência de alíquotas variadas, na qual o valor da alíquota cresce conforme a base de cálculo do tributo é majorada. Como instrumento da tributação, a progressividade apresenta-se, segundo o objetivo almejado, sob duas modalidades: progressividade fiscal e extrafiscal. Na primeira, a intenção é o incremento da arrecadação, tributando mais pesadamente quem manifesta maior riqueza, ou seja, como anota Sabbag, “quanto mais se ganha, mais se paga”[1]. Noutro norte, na progressividade extrafiscal o escopo é outro; a finalidade é induzir o contribuinte a um determinado comportamento, moldando sugestivamente a conduta através da tributação.
         A Constituição previu expressamente a progressividade da alíquota de três impostos: do ITR (art. 153, 4º, I), do IPTU (art. 156, § 1º, I e II e art. 182, § 4º, II) e do imposto sobre a renda (art. 153, 2º, I). Na primeira espécie tributária o fim da progressividade é nitidamente extrafiscal, pois visa desestimular a manutenção de propriedades improdutivas. Da mesma natureza era, originalmente, a progressividade prevista na Constituição para o IPTU, até que a Emenda Constitucional n. 29/2000 trouxe três novas hipóteses de alíquotas progressivas, em função do valor, da localização e do uso do imóvel. A partir dessa emenda o IPTU passou a ter uma dupla progressividade, uma delas de feição claramente arrecadatória [2]. Já no caso do imposto sobre a renda, a função da progressividade é precipuamente guarnecer as finanças públicas.
         Insta saber se além das hipóteses previstas na Constituição é admissível ao legislador infraconstitucional estatuir a progressividade para outros impostos. Mais especificamente, perquire-se nesse estudo a possibilidade de o legislador estadual estabelecer uma alíquota progressiva para o ITCMD, nas condições, por exemplo, da seguinte tabela:
BASE DE CÁLCULO
ALÍQUOTA
Até R$ 40.000,00
1,5 %
De R$ 40.001,00 até R$ 250.000,00
2,5 %
A partir de R$ 250.001,00
3,5 %
                    O ITCMD é o imposto de competência dos estados incidente sobre a transmissão de quaisquer bens ou direitos por causa mortis ou doação. Como afirmado, não existe na Constituição previsão explícita da progressividade para este tributo, conquanto também não haja vedação. A Resolução n. 09/92 do Senado Federal fixou em 8% a alíquota máxima do imposto e, indo além do comando constitucional, facultou aos estados a instituição de alíquotas progressivas dependentes do quinhão de cada herdeiro:
Res. Senado Federal 09/92
Art. 2º As alíquotas dos impostos, fixadas em lei estadual, poderão ser progressivas em função do quinhão que cada herdeiro efetivamente receber, nos termos da Constituição Federal. (grifo acrescentado)
                   Sabbag [3] anota que essa resolução contraria o entendimento majoritário assentado na doutrina e jurisprudência, consoante também leciona José Eduardo Soares de Melo[4]:
A Constituição estabeleceu de modo expresso, preciso, delimitado e categórico, as espécies de impostos que devem ser plasmados pela progressividade, não ficando ao mero interesse do legislador ordinário utilizar este princípio, do modo como melhor lhe aprouver.
                   Concluindo, no tocante ao tributo aqui examinado, que
a possibilidade de ser estabelecida a progressividade em função do quinhão que cada herdeiro efetivamente receber (prevista na mencionada Resolução), não contém amparo na Constituição.
                   Em vários julgados o Supremo analisou a questão da progressividade das alíquotas nos impostos reais, considerando inconstitucionais tais alíquotas sob o axiomático fundamento de que ela não é cabível nos imposto dessa natureza (v. RE 452146 AgR, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 03/04/2008). Por outro lado, quando o tema é propriamente o ITCMD, a jurisprudência da Corte parece não estar ainda suficientemente solidificada. Emblemático é o julgamento do RE 526045/SP. Após o voto do ministro relator Ricardo Lewandowski, que reputou inconstitucional a alíquota progressiva do ITCMD sob o argumento de que “a progressividade, no caso de impostos reais, em nosso ordenamento legal, só pode ser adotada se houver expressa previsão constitucional”, abriu divergência o Min. Eros Grau, asseverando que
todos os impostos estão sujeitos ao princípio da capacidade contributiva, mesmo os que não tenham caráter pessoal, e que o que esse dispositivo estabelece é que os impostos, sempre que possível, deverão ter caráter pessoal. Ou seja, a Constituição prescreve como devem ser os impostos, todos eles, e não somente alguns. Assim, todos os impostos, independentemente de sua classificação como de caráter real ou pessoal, podem e devem guardar relação com a capacidade contributiva do sujeito passivo. (RE 562045/RS, rel.Min. Ricardo Lewandowski, 17.9.2008)
         Acompanharam a divergência os ministros Joaquim Barbosa, Carmen Lúcia e Menezes Direito. Além disso, no RE 548278/RS, o Min. Marco Aurélio já se pronunciara favoravelmente à possibilidade de alíquota progressiva para o ITCMD.
         A posição desses cinco ministros, aliada ao fato de o tribunal já ter assentido que uma emenda constitucional estabelecesse alíquotas progressivas para um imposto real, nos termos do enunciado sumular n. 668 – que julgou constitucional a EC 29/2000 –, aponta para uma tendência na jurisprudência da Suprema Corte de acatar a tese advogada pelas fazendas estaduais de que o sistema tributário delineado na Constituição comporta um ITCMD progressivo, abandonando seu anterior posicionamento.
         O fundamento dessa mudança está para além do enigmático § 1º do art. 145 da Constituição. Com efeito, a permissão para a instituição da progressividade não somente em alguns impostos parece exsurgir da própria essência do estado democrático e social de direito. A busca pela justiça fiscal, através de princípios como o da capacidade contributiva, exige a desoneração dos que possuem menor potencial contributivo, em face da tributação mais rigorosa daqueles cujas condições de contribuir são maiores. A progressividade, nesse sentido, encontra amparo na sistemática constitucional, como instrumento de realização da justiça fiscal. Conclui-se, pois, que a progressividade da alíquota do ITCMD estabelecida pela lei estadual no exemplo dado é constitucional, sendo válida em face da Constituição Federal.


[1] SABBAG, Eduardo de Moraes.  Manual de Direito Tributário. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 403.
[2] A esse respeito veja-se a súmula n. 668 do STF, cuja leitura, a contrario sensu, expressa o entendimento do Supremo pela constitucionalidade da polêmica EC 29/00: “668 - É inconstitucional a lei municipal que tenha estabelecido, antes da Emenda Constitucional 29/2000, alíquotas progressivas para o IPTU, salvo se destinada a assegurar o cumprimento da função social da propriedade urbana”.
[3] SABBAG, Eduardo de Moraes.  Manual de Direito Tributário. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 982.
[4] Curso de Direito Tributário. 3 ed. São Paulo: Dialética, 2002. p. 38 e 338, respectivamente.