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terça-feira, 2 de novembro de 2010

A alteração da data de pagamento do tributo deve respeitar o princípio da estrita legalidade tributária?

         O princípio da legalidade é a “nota essencial do Estado de Direito”[1]. Sua importância é revelada na maneira como a Constituição Federal o agasalha entre os direitos e garantias individuais no art. 5º, II, segundo o qual “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. A máxima constitucional proclama o grande dogma do estado democrático de direito de que todos estão sujeitos à Constituição e às leis, formas por excelência de expressão da vontade popular. Eis os contornos gerais do princípio da legalidade.
         Mas esse princípio é reproduzido noutros pontos do texto constitucional, desdobrando-se para adequar-se a ambientes normativos peculiares onde recebe arestas mais específicas. É o que ocorre no âmbito tributário, onde o princípio encontra-se (adaptado) no art. 150, I:
Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, aos Municípios e ao Distrito Federal:
I – exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça;
         Para além do conceito de legalidade está o de reserva de lei, também chamada legalidade em sentido estrito, tipicidade fechada (regrada ou cerrada) e reserva legal. Conquanto sejam semelhantes, os conceitos não se confundem. Utilizando-se da lição de José Afonso da Silva, “o primeiro significa a submissão e o respeito à lei, ou a atuação dentro da esfera estabelecida pelo legislador. O segundo consiste em estatuir que a regulamentação de determinadas matérias há de se fazer necessariamente por lei formal”. Significa dizer que as matérias adstritas à reserva de lei não poderão ser dispostas por outro instrumento senão por lei formal originada através de processo legislativo próprio e emanado de órgão legislativo constitucional.
         Como percebe, o princípio da legalidade norteia a cobrança dos tributos. Alguns elementos do tributo, contudo, estão rigorosamente atados à legalidade restrita, nos termos do art. 97 do CTN:
Art. 97. Somente a lei pode estabelecer:
I - a instituição de tributos, ou a sua extinção;
II - a majoração de tributos, ou sua redução, ressalvado o disposto nos artigos 21, 26, 39, 57 e 65;
III - a definição do fato gerador da obrigação tributária principal, ressalvado o disposto no inciso I do § 3º do artigo 52, e do seu sujeito passivo;
IV - a fixação de alíquota do tributo e da sua base de cálculo, ressalvado o disposto nos artigos 21, 26, 39, 57 e 65;
V - a cominação de penalidades para as ações ou omissões contrárias a seus dispositivos, ou para outras infrações nela definidas;
VI - as hipóteses de exclusão, suspensão e extinção de créditos tributários, ou de dispensa ou redução de penalidades.
         Da leitura desse artigo extrai-se necessariamente duas implicações: a) primeiro, a alíquota, a base de cálculo, o sujeito passivo e o fato gerador são os elementos estruturantes do tributo, estão na base de sua formação, sem eles sequer o tributo existe; b) em segundo lugar, como consequência direta da primeira afirmação, a determinação desses elementos não pode se dar através de ato infralegal. A segurança jurídica requerida pela imposição de tributos não se satisfaz com a lei em sentido material, apenas por ser abstrata e impessoal, exige sim a lei formal com todos os caracteres anteriormente mencionados.   Quanto a isto não há dúvida.
         Porém, questão que tem despertado calorosas discussões jurisprudenciais e doutrinárias está em se saber se o prazo é um elemento essencial na composição da espécie tributária. O prazo para o pagamento do tributo, embora não integrante do rol do art. 97, requer lei formal para sua estipulação? A alteração da data de pagamento do tributo deve respeitar o princípio da estrita legalidade tributária?
         Esclarecedora na compreensão do tema é a leitura dos votos dos ministros do Supremo Tribunal Federal no RE 140669 PB, em que se discutiu a constitucionalidade do art. 66 da Lei 7.450/85 que autorizou o Ministério da Fazenda a fixar o prazo de recolhimento do IPI, e da Portaria n. 266/88/MF, pela qual dito prazo foi fixado pela dita autoridade de modo diferente do previsto no DL 326/67. Nesse julgado decidiu-se por maioria de votos pela constitucionalidade da delegação feita pela Lei 7.450/85.
         Veja-se como a matéria restou acordada:
EMENTA: TRIBUTÁRIO. IPI. ART. 66 DA LEI Nº 7.450/85, QUE AUTORIZOU O MINISTRO DA FAZENDA A FIXAR PRAZO DE RECOLHIMENTO DO IPI, E PORTARIA Nº 266/88/MF, PELA QUAL DITO PRAZO FOI FIXADO PELA MENCIONADA AUTORIDADE. ACÓRDÃO QUE TEVE OS REFERIDOS ATOS POR INCONSTITUCIONAIS. Elemento do tributo em apreço que, conquanto não submetido pela Constituição ao princípio da reserva legal, fora legalizado pela Lei nº 4.502/64 e assim permaneceu até a edição da Lei nº 7.450/85, que, no art. 66, o deslegalizou, permitindo que sua fixação ou alteração se processasse por meio da legislação tributária (CTN, art. 160), expressão que compreende não apenas as leis, mas também os decretos e as normas complementares (CTN, art. 96). Orientação contrariada pelo acórdão recorrido. Recurso conhecido e provido.
         Os votos vencedores pautaram-se na sólida argumentação de que o prazo de vencimento do tributo, estando fora do rol do art. 97, não demanda a proteção emprestada pela técnica da reserva de lei. Portanto, os critérios e prazos para o recolhimento do tributo só podem estar compreendidos na expressão “legislação tributária” conceituada no art. 96 do CTN, que abrange não só as leis, mas “os tratados e as convenções internacionais, os decretos e as normas complementares que versem, no todo ou em parte, sobre tributos e relações jurídicas a eles pertinentes”. Esse raciocínio é corroborado pelo art. 160 do mesmo CTN cuja redação prevê o prazo de 30 dias para o vencimento do crédito tributário, “quando a legislação tributária não fixar o tempo do pagamento”.
         Contudo, os votos discordantes dos ministros Marco Aurélio, Sepúlveda Pertence e Carlos Velloso não permitiram que o assunto se resolvesse sem inquietações.
         A principal vertente argumentativa do voto do Min. Marco Aurélio, condutor da divergência, é a impossibilidade de delegar-se a autoridade administrativa a faculdade de alterar o prazo para o adimplemento do tributo, por tratar-se de matéria afeta à reserva de lei, nos termos do art. 48, inciso I da Constituição Federal. Segundo o ministro, citando Carlos Eduardo Manfredini e Roberto Catalano Botelho Ferraz, “não faz sentido ‘exigir a legalidade para definir todos os ângulos estruturais do tributo e dispensá-lo para o momento da consumação do sacrifício patrimonial do particular’”. Assentou como premissa de seu voto que o prazo do pagamento da exação está inserido no âmbito da competência indelegável do Congresso Nacional para dispor sobre “arrecadação e distribuição de rendas”.
         Pode-se pinçar ainda do julgado, no mesmo sentido, o argumento do Min. Carlos Velloso, segundo quem “a delegação legislativa com legitimidade constitucional é aquela inscrita na Constituição”, arrematando que se não há na Constituição comando autorizando a delegação (da faculdade de dispor sobre o prazo do tributo), tal delegação é inconstitucional.
         Conquanto não integre o rol do art. 97, certamente o momento consumativo da imiscuição estatal no patrimônio do particular reveste-se da maior relevância. Basta se questionar se é possível a existência de um tributo sem prazo para ser cobrado? Se existir, de que vale um tributo sem data para pagamento? Ou ainda, o prazo de um tributo pode ser alterado a qualquer tempo e sem qualquer formalidade?   A resposta honesta a estas questões espanca qualquer dúvida sobre o fato de que a importância do momento do pagamento do tributo requer seja o mesmo revestido de alto grau de segurança jurídica, recomendando, portanto, a proteção da lei em sentido estrito.
         Para concluir, em reforço aos argumentos expendidos pelos eminentes ministros do Supremo, deve-se relembrar que a questão do tributo no tempo é tão importante que a Constituição lhe dedicou um elaborado sistema de institutos visando fortalecer a noção de segurança jurídica e impedir que o cidadão seja tributado inopinadamente. Trata-se do princípio da anterioridade tributária, anual e nonagesimal, também chamado princípio da não-surpresa.
         Como afirma Sabbag[2]:
De fato, a noção de segurança jurídica alastra-se por todo o ordenamento jurídico, em todas as direções, influenciando sobremaneira alguns postulados, em matéria tributária, com os quais se entrelaça ou, ainda, nos quais se desdobra, v.g., o próprio principio da anterioridade tributária. 
         É também o que se leciona Paulo de Barros Carvalho:
a anterioridade objetiva implementar o sobreprincípio da  segurança jurídica, de  modo  que  o  contribuinte  não  seja surpreendido com exigência tributária inesperada.
         Se o constituinte não se furtou de estabelecer parâmetros rígidos para a implementação do tributo no tempo, evitando conceder à autoridade administrativa ampla liberdade para determinar o início da incidência temporal do tributo, tampouco pode o legislador ordinário esquivar-se de tal atribuição.


[1] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional positivo. 24. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 420.
[2] SABBAG, Eduardo de Moraes.  Princípio da legalidade tributária.  Fonte: Manual de Direito Tributário.  São Paulo: Saraiva, 2009, pp. 23-50. Material da 1ª aula da disciplina “Sistema constitucional Tributário: Princípios e Imunidades”, ministrada no curso de pós-graduação lato sensu televirtual em Direito Tributário – Anhanguera - Uniderp|Rede LFG.

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