V. Mérito Administrativo
1. Sentido
Vimos, ao estudar o poder discricionário da Administração, que em certos
atos a lei permite ao agente proceder a uma avaliação de conduta, ponderando os
aspectos relativos à conveniência e à oportunidade da prática do ato. Esses
aspectos que suscitam tal ponderação é que constituem o mérito
administrativo.
Pode-se, então, considerar mérito administrativo a avaliação da
conveniência e da oportunidade relativas ao motivo e ao objeto, inspiradoras da
prática do ato discricionário. Registre-se que não pode o agente proceder a
qualquer avaliação quanto aos demais elementos do ato – a competência, a
finalidade e a forma, estes vinculados em qualquer hipótese. Mas lhe é lícito
valorar os fatores que integram o motivo e que constituem o objeto, com a
condição, é claro, de se preordenar o ato ao interesse público.
2. Vinculação e Discricionariedade
Quando o agente administrativo está ligado à lei por um elo de
vinculação, seus atos não podem refugir aos parâmetros por ela traçados. O
motivo e o objeto do ato já constituirão elementos que o legislador quis
expressar. Sendo assim, o agente não disporá de nenhum poder de valoração
quanto a tais elementos, limitando-se a reproduzi-los no próprio ato. A
conclusão, dessa maneira, é a de que não se pode falar em mérito administrativo
em se tratando de ato vinculado.
O contrário se passa quanto aos atos discricionários. Nestes se defere
ao agente o poder de valorar os fatores constitutivos do motivo e do objeto,
apreciando a conveniência e a oportunidade da conduta. Como o sentido de mérito
administrativo importa essa valoração, outra não pode ser a conclusão senão a
de que tal figura só pode estar presente nos atos discricionários. Referida
valoração de conveniência e oportunidade é que reflete o que modernamente se
denomina de reserva do possível, ou seja, o conjunto de elementos
que tornam possível esta ou aquela ação governamental e, por via de
consequência, o que se revela inviável de ser executado pela Administração em
certo momento e dentro de determinadas condições.
Já tivemos a oportunidade de assinalar que o administrador pode fazer
valoração de conduta tanto na discricionariedade quanto na aplicação de
conceitos jurídicos indeterminados, institutos que, apesar de terem alguns
pontos comuns, apresentam fisionomia particular. Para não haver repetições
inúteis, consulte-se o que dissemos anteriormente sobre tais aspectos.
3. Controle do Mérito
A valoração de conduta que configura o mérito administrativo pode
alterar-se, bastando para tanto imaginar a mudança dos fatores de conveniência
e oportunidade sopesados pelo agente da Administração. Na verdade, o que foi
conveniente e oportuno hoje para o agente praticar o ato pode não sê-lo amanhã.
O tempo, como sabemos, provoca alteração das linhas que definem esses
critérios.
Com tal natureza, vemos que o agente pode mudar sua concepção quanto à
conveniência e oportunidade da conduta. Desse modo, é a ele que cabe exercer
esse controle, de índole eminentemente administrativa. Como exemplo, o caso de
uma autorização para fechamento de rua com vistas à realização de uma festa
junina. Pode a autorização ter sido dada pelo período de uma semana seguida,
porque no momento de decidir o agente encontrou conveniência e oportunidade.
Se, por acaso, se alterarem essas condições no meio do período, compete ao
mesmo agente desfazer o ato e cancelar a autorização. Pertenceu-lhe, assim, o
controle.
O Judiciário, entretanto, não pode imiscuir-se nessa apreciação,
sendo-lhe vedado exercer controle judicial sobre o mérito administrativo. Como
bem aponta SEABRA FAGUNDES, com apoio em RANELLETTI, se pudesse o juiz fazê-lo, “faria
obra de administrador, violando, dessarte, o princípio de separação e
independência dos poderes”. E
está de todo acertado esse fundamento: se ao juiz cabe a função jurisdicional,
na qual afere aspectos de legalidade, não se lhe pode permitir que proceda a um
tipo de avaliação, peculiar à função administrativa e que, na verdade, decorre
da própria lei. No mesmo sentido, várias decisões de Tribunais, como se
observará adiante no item relativo à jurisprudência (item XIV).
O próprio Judiciário, faça-se justiça, tem observado o sistema pátrio e
se expressado por meio da posição que reflete a melhor técnica sobre o tema.
Assim, já se decidiu que a conveniência e oportunidade do ato
administrativo constitui critério ditado pelo poder discricionário, o qual,
desde que utilizado dentro dos permissivos legais, é intangível pelo Poder
Judiciário. Em confirmação, assentou-se: Abonar
ou não as faltas havidas por aluno do Curso Especial de Formação de Oficiais
insere-se no âmbito do mérito do ato administrativo, que não é passível de
crítica pelo Judiciário, cuja missão é verificar a conformação do ato com a lei
escrita. Essa é realmente a correta visão
jurídica, de modo que não encontram ressonância aquelas vozes que, por seu
radicalismo e desvio de perspectiva, insinuam admitir a invasão do mérito
administrativo pelo juiz.
O STJ deixou a questão em termos claros, assentando que é defeso
ao Poder Judiciário apreciar o mérito do ato administrativo, cabendo-lhe
unicamente examiná-lo sob o aspecto de sua legalidade, isto é, se foi praticado
conforme ou contrariamente à lei. Esta solução se funda no princípio da
separação dos poderes, de sorte que a verificação das razões de conveniência ou
de oportunidade dos atos administrativos escapa ao controle jurisdicional do
Estado.
O Supremo Tribunal Federal corrobora essa posição e, em hipótese na qual
se discutia expulsão de estrangeiro, disse a Corte que se trata de ato
discricionário de defesa do Estado, sendo de competência do Presidente da
República, a quem incumbe julgar a conveniência ou oportunidade da
decretação da medida, e que ao Judiciário compete tão-somente a
apreciação formal e a constatação da existência ou não de vícios de nulidade do
ato expulsório, não o mérito da decisão presidencial.
Referidas decisões são dignas de aplausos por demonstrarem, com
exatidão, o perfil relativo ao controle do mérito administrativo e retratam
como a questão merece ser realmente enfocada.
É claro que, a pretexto de exercer a discricionariedade, pode a
Administração disfarçar a ilegalidade com o manto de legitimidade do ato, o que
não raro acontece. Tal hipótese, entretanto, sempre poderá ser analisada no que
toca às causas, aos motivos e à finalidade do ato. Concluindo-se ausentes tais
elementos, ofendidos estarão os princípios da razoabilidade e da
proporcionalidade, justificando, em consequência, a invalidação do ato. Tais
princípios, como já tivemos a oportunidade de consignar, refletem poderosos e
modernos instrumentos para enfrentar as condutas eivadas de abuso de poder,
principalmente aquelas dissimuladas sob a capa de legalidade.
JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO. Manual de Direito
Administrativo. 24 Ed. Editora Lumen Juris, 2011.
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